| octubre 2021, Por Bárbara Sá

Machismo da cadeia

Eram 3h da madrugada de 30 de dezembro de 2019, quando um menino de apenas 7 anos saiu correndo da casa dele, na rua Sapador 19, no bairro Souza Lima, em Várzea Grande, com a irmã bebê no colo e segurando as mãos do outro irmão, de 5 anos. Gritando “socorro, socorro. Meu pai mandou matar minha mãe”. Segundo relatos, dois homens, trajando calça e camisa preta, invadiram o local e dispararam contra Daiany Tatsch Gorget, que, aos 25 anos, morreu com um tiro na cabeça.

“Cuida de mim, Deus, como a menina dos teus olhos”, disse a vítima em uma página da rede social, meses antes de ser morta por ordem dada através de um telefonema. Ela tinha duas medidas de restrição contra o marido, integrante do Comando Vermelho e que estava preso na Penitenciária Central do Estado (PCE). De acordo com boletim de ocorrência, ela vinha sofrendo ameaças constantes.

Para estas mulheres, as grades das cadeias são incapazes de conter a violência masculina que, muitas vezes, termina em feminicídios. Com medo, sofrem caladas e “invisíveis”, porque estes casos não constam nas estatísticas oficiais, nem de violência contra a mulher, nem de feminicídio. São alvos da Maria da Penha do crime organizado.

Como diz a letra da música sertaneja da dupla Henrique e Juliano “Liberdade Provisória”, entoada com o refrão “vai ter que me aceitar de volta”, são obrigadas a manter relacionamentos, sob ameaça, tortura, controle e, muitas vezes, isso custa a própria vida.

Se a aplicação da Lei Maria da Penha e a prevenção ao feminicídio ainda são um desafio no Brasil, as dificuldades aumentam quando esses casos cruzam com o crime organizado. As vítimas ficam, muitas vezes, jogadas à própria sorte e procuram a Defensoria Pública do Estado em busca de acolhimento e de uma solução.

A mãe de uma vítima de agressor do CV relata que, mesmo com o marido preso, a filha vinha sofrendo ameaças de morte. “Ela já quis sair várias vezes de Mato Grosso por não se sentir segura”.
 
Essas mulheres quase nunca denunciam a agressão à polícia por não sentirem segurança. Uma delas contou à reportagem que sentia medo de ir à Defensoria pedir ajuda, ser seguida e acabar morta em plena avenida do CPA.

A professora Vera Bertolini, do Núcleo Interinstitucional de Estudos da Violência e Cidadania da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), explica que essas mulheres vivem sob regras e doutrinas, assim como os demais faccionados. “Elas não têm assistência. Estão bem mais desprotegidas e sem acesso às leis do que gostaríamos. Vivemos em um país, Estado e cidade machistas, mas o mundo do crime, nesse contexto, é ainda pior para elas”, confirma.

Esses maridos ou namorados mantêm contatos fora dos presídios, os famosos “olheiros”, que monitoram suas parceiras e informam o “passo a passo” delas. Caso andem fora da linha, são punidas. Em uma das denúncias de Daiany, ela informou aos policiais que o marido mandou matá-la assim que a filha nascesse. Nesse período, ela ainda estava grávida.

“Se o homem, que está lá dentro, fica sabendo que a mulher está saindo, indo em festas, elas apanham. Já teve situação em que estava com uma amiga, esposa de um preso do CV, em um show na Capital, e um dos olheiros também estava no local. Ele chegou perto e disse: você tem 10 minutos para sair daqui ou vou avisá-lo. E ela foi embora. É sempre assim”, detalha uma fonte, que pediu para não ser identificada.

A defensora pública Rosana Leite conta que já atendeu algumas mulheres nesta situação e muitas pedem para que não seja registrado boletim de ocorrência. Devido ao risco que correm, o órgão sempre respeita a decisão das vítimas. “Sempre respeito e dou crédito à palavra da mulher e à vontade dela. Muitas, apesar de falarmos que a Lei Maria da Penha é efetiva e eficaz, têm medo. O temor é muito grande por aquele agressor estar engendrado no crime organizado. E o Estado não venha a acolher neste momento”, pontua a defensora.

Uma das dificuldades que enfrentam, ao tentar pedir ajuda, é o preconceito. “A sociedade e até alguns policiais são muito cruéis. Já fui acompanhar essa minha prima até a delegacia e tivemos que ouvir as piadinhas do tipo: quem mandou namorar bandido? É esse tipo de coisa que dificulta ainda mais. Sempre ficam desassistidas”, relata uma parente, que também pediu sigilo da identidade.  

Diante disso, a defensora Rosana explica que, em um período de 2 anos, pelo menos 10 vítimas deste tipo de crime procuraram a ajuda da Defensoria, contudo nem a metade registrou boletim de ocorrência. No total, estima-se que só três fizeram isso. Os agressores, nestes casos, agem de maneira “diferente”, ou seja, não encostam na mulher, mas mandam um “soldado” do CV fazer isso.
 
“Nós vivemos em um mundo em que não basta gritar polícia e a teremos aos pés. E essa falta de efetividade das leis é que causa temor nessas mulheres. Segundo o Data Senado, pesquisa divulgada ano passado, quando a lei Maria da Penha fez 13 anos, aponta que 79% das mulheres que são vítimas de violência doméstica e que não lavraram o BO disseram que temiam que a agressão ficasse ainda cada vez maior. Isso mostra que há essa dúvida quanto à efetividade da Lei Maria da Penha e quanto à efetividade e o amparo a essas vítimas”.
 
Segundo ela, a Defensoria faz de tudo para auxiliar as vítimas, desde o encaminhamento a todos os serviços de atendimento possíveis, para que elas entendam o quanto é importante sair desse ciclo de violência, até em  busca de impedir um feminicídio.

“Elas detalham que sofrem ameaças dos homens que estão aqui fora. Muitas sofrem no seguinte sentido: o agressor está preso, mas tem as pessoas que estão aqui fora que atuam em seu favor e as ameaçam principalmente se arrumam um outro homem. Avisam: se eu souber que tem homem dentro da sua casa ou se souber que entrou um outro homem em casa, já sabem. Então, com isso, elas se sentem totalmente vigiadas naquele momento. São mantidas em cárceres de porteiras abertas, com as janelas abertas, com as portas abertas, mas encarceradas aqui fora”, detalha a defensora. Ela reafirma que a Defensoria pode e deve ser procurada e tem mecanismos de dar socorro.

A coordenadora de Polícia Comunitária da PM, tenente-coronel Emirella Martins, diz que essas mulheres não aceitam participar do programa Patrulha Maria da Penha, mas não revelam que seja por esse o motivo. “Afirmam que não precisam, que está tudo bem e que o acusado está cumprindo a ordem de judicial. Apenas uma que disse de forma clara que não queria polícia na porta da casa dela, exatamente com essas palavras. Com isso, nós não sabemos o histórico. Se a pessoa não aceitar o serviço, não podemos iniciar o acompanhamento. Como não temos o conhecimento dos pormenores, não podemos fazer nada”, explica.

Para o Estado, esse é um problema que nem existe, uma vez que não se tem dados sobre ele. Por não “existirem” oficialmente, esses crimes não são punidos, nem prevenidos. Nos estudos de criminalidade isso é chamado de “cifra oculta”, porque não chega ao conhecimento do Estado. Um exemplo disso é que, ao analisar os boletins de ocorrência, não fazem referência ao tipo de crime (Maria da Penha) e evitam falar o nome do Comando Vermelho, já que geralmente consta apenas “uma facção”.

Os casos citados nesta reportagem estão relacionados com prisões por crimes de tráfico de drogas, homicídio e roubo, mas não propriamente pela violência doméstica e familiar praticada contra suas companheiras.

“A prisão é um foco muito mais machista do que aqui fora. A mulher realmente é considerada posse do homem. Inclusive, agressões cometidas dentro dos presídios expõem como a violência contra a mulher é natural. Os homens podem agredir suas mulheres, inclusive quando elas vão para a visita e nada é feito, como se isso fosse uma questão privada do casal. Já acompanhei situações assim”, pontua um parente.
 
Judiciário 

Além da proteção das mulheres, a Lei Maria da Penha recomenda que os governos (em todas as esferas) criem e promovam centros de educação e de reabilitação para os agressores. Também prevê que o juiz pode determinar o comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação. Mas isso ainda está longe de ser realidade.

O #rdnews procurou o da 1ª Vara Especializada de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Cuiabá, conduzida pelo juiz Jamilson Haddad Campos, que inclusive foi o pioneiro em trazer a técnica das Constelações Familiares para as Varas de Violência.

Na visão dele, a técnica permite que as vítimas tomem consciência do emaranhado emocional e do ciclo de violência em que estão inseridas com seus parceiros. Para o magistrado, ao tomarem conhecimento sobre as leis que regem a vida, ou seja, lei do pertencimento, lei da hierarquia e lei do equilíbrio entre o dar e o receber, se empoderam e ganham força para mudar de padrão. “É um grau a mais de dificuldade para essas mulheres (…) elas têm o fator medo maior ainda, aumentado, porque, além da dependência emocional e econômica, têm uma preocupação mais acentuada com a integridade física delas”.

Por isso, para o magistrado, autoridades públicas deveriam resguardar ainda mais a vida delas. Ele cita a Patrulha Maria da Penha como um projeto que causa um efeito psicológico importante, no controle do problema.

Publicado originalmente em rdnews.com

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