| febrero 2018, Por Tiago Henrique

Quilombo

Os “quilombos” eram assentamentos de escravos fugitivos do século XIX, regiões distantes dos centros urbanos e em locais de difícil acesso, geralmente camuflados no meio da selva. Com o tempo, eram pessoas que desenvolveram meios de vida, cultura e até resistência. Agora, a Suprema Corte do Brasil pode mudar o futuro das demarcações das áreas “quilomboas” no país. Nós estrelamos em portugues com esse trabalho que a América Latina conhece pouco sobre.

Los “quilombos”  fueron asentamientos de los esclavos fugitivos del siglo XIX, regiones alejadas de los centros urbanos y en lugares de difícil acceso, generalmente mimetizados en medio de la selva. Con el tiempo fueron pueblos que desarrollaron medios de vida, cultura y hasta resistencia. Ahora, el Supremo Tribunal de Brasil puede cambiar el futuro de las demarcaciones de áreas “quilomboas” en el país. Nos estrenamos en portugués con este trabajo del que Latinoamérica sabe poco.

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No dia 1 de Setembro de 2016 eu recebi um telefonema:

–Tiago, você viu o que fizeram? Isso vai ser muito ruim para gente, tenho certeza. O governo pode acabar com todo o nosso trabalho, não pode?

A ligação estava ruim e não durou muito, foi realizada do único ponto onde se consegue sinal de telefonia no alto da serra do Fasola, zona rural de Buíque, entre o agreste e o sertão de Pernambuco. Do outro lado da linha, Walter Sampaio de Matos, 53 anos, servente de pedreiro e esposo de Josefa Bezerra de Matos, 52 anos, presidente da Associação dos Quilombolas e Descendentes do sítio Mundo Novo.

Vista do Quilombo do alto da Serra do Fasola em Buíque. Foto: Thiago Henrique
Vista do Quilombo do alto da Serra do Fasola em Buíque. Imagem: Tiago Henrique

 

 

A região está situada a 27 km do centro do município de Buíque, 300 km de Recife. Saindo do centro, no sentido sul, após a Praça de Eventos, se inicia uma estrada vicinal; por ali se dá o principal acesso à comunidade Quilombola do Mundo Novo. A estrada de barro segue até um cruzamento. À direita do cruzamento, seguindo em direção ao conhecido pé da serra, qualquer pessoa informa designando o local como sítio dos quilombolas  –embora existam descendentes de quilombolas morando em praticamente todo o município de quase 60 mil habitantes. O alto da serra limita geograficamente os sítios Mundo Novo e Fasola.

Lá vivem aproximadamente 25 famílias, um pouco mais de 100 pessoas em um terreno de mais ou menos 20 hectares.

A ligação de Walter, um dia após a cassação do mandato de Dilma Rousseff, ficou marcada. Por um lado, pelo tom de preocupação em sua voz, certamente um reflexo das incertezas que pairam sobre o futuro abstrato do país desde 2 de Dezembro de 2015; por outro, por seu questionamento se comprovar redondamente certo, meses depois.

Sua pergunta fazia referência ao processo de demarcação e titulação das terras da sua comunidade, iniciado em 2014. Mal sabia ele que o presidente recém-empossado, que já dava sinais de sua política quanto as demarcações de áreas quilombolas (Em Maio daquele ano, a responsabilidade das demarcações foi de três ministérios diferentes!) naquele mesmo mês sentaria com diferentes agências governamentais para discutir a suspensão das demarcações.

Abril de 2017, oito meses depois daquele telefonema, Josefa e Walter anunciavam em uma reunião extraordinária da associação:

–Pessoal, o governo mandou suspender os processos de demarcação de áreas quilombolas.

Essa se tornou a primeira vez que um governo federal suspende as titulações de áreas quilombolas por tempo indeterminado desde que essas terras começaram a ser regularizadas, em 1995.

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Mesa do café da manhã. O dia de trabalho na roça e na feira livre começa as 05:00 e vai até as 18:00 horas. Foto: Thiago Henrique
Mesa do café da manhã. O dia de trabalho na roça e na feira livre começa as 05:00 e vai até as 18:00 horas. Imagem: Tiago Henrique

São aproximadamente cinco horas da manhã. O cheiro de café e milho cozido atravessa a cortina que separa a cozinha da sala. Escuto o burburinho das meninas, Mônica, filha mais nova de Josefa, Luana e Deumázia, filhas de criação, no quarto ao lado combinando entre si as tarefas do dia. Pâmela, a filha do meio, chegou de São Paulo há pouco, onde trabalhava com o marido em uma granja de Campinas. Com o dinheiro conseguiram construir uma casinha no terreno dos pais onde pôde terminar a gestação do primeiro filho com tranquilidade. Paloma, a segunda filha do meio, acabou de se casar e está grávida. E Patrícia, a filha mais velha, mora com o marido e os dois filhos em outra casa construída no terreno dos pais com o dinheiro do trabalho fora de Pernambuco.

Do lado de fora da casa, Waltinho, único filho homem e caçula, grita com as vacas e com as galinhas. Atualmente, como qualquer família do campo, para sobreviver pratica-se a agricultura familiar para subsistência, criação de pequenos animais domésticos e pouquíssimo gado. Durante todo o ano, plantam roças de milho, feijão de “arranca”, “feijão gandu”, “fava” melancia, batata-doce, macaxeira, jerimum e fazem farinha. Mas o trabalho no roçado não é suficiente. Além da estiagem que, segundo o governo já é a maior em 50 anos, a indisponibilidade de terras somado a falta de tecnologias –como irrigação– são entraves para o desenvolvimento das potencialidades locais. “Uma das coisas que mais busco para comunidade é a construção de poços artesianos. Sem as terras regularizadas é muito difícil conseguir. Ficar na mão do governo ou da prefeitura é ruim. Eles sequer arrumam a estrada! Você viu a dificuldade que é chegar aqui”, conta Walter.

Buíque, além de possuir as marcas da corrupção que consomem as pequenas cidades do interior nordestino, um índice de analfabetismo superior a 40%, detêm um dos menores índices de desenvolvimento humano do estado. Aos jovens do quilombo, resta como alternativa o “trabalho alugado”, ou seja, fazer uma jornada das 07h00 até as 17h00 limpando mato ou plantando palma nas fazendas do entorno. A maioria das terras pertence à oligarquia local. Recebem, por nove horas de trabalho R$ 25,00. Outros jovens preferem migrar para São Paulo, Minas Gerais ou Goiás para trabalhar no corte da cana-de-açúcar ou em granjas. Viajam anualmente em março e retornam para casa em dezembro.

Em termos de saúde ainda está muito presente a medicina caseira. Os quintais com diferentes tipos de ervas e árvores erva-cidreira, capim –santo, aroeira, quixabeira, caju roxo, dentre outras são usadas na produção de chás e xaropes. A falta de um hospital no município somado aos relatos das dificuldades do acesso aos serviços básicos de saúde indica que o problema perdura por décadas. Quando existe algum morador doente, as famílias se mobilizam e, em último caso, repetem o que faziam há 100 anos: o doente era colocado em uma rede e diversas pessoas se revezam o levando para o centro de Buíque de onde se parte para cidade vizinha, Arcoverde, a 25 km.

Graça, uma das irmãs de Josefa, em sua roça. Segundo informações do governo, a região agreste passa pela maior estiagem em 50 anos. A falta de registro das terras dificulta a construção de poços artesianos para comunidade dificultando a irrigação das plantações e prejudicando a agricultura familiar. Imagem: Thiago Henrique
Graça, uma das irmãs de Josefa, em sua roça. Segundo informações do governo, a região agreste passa pela maior estiagem em 50 anos. A falta de registro das terras dificulta a construção de poços artesianos para comunidade dificultando a irrigação das plantações e prejudicando a agricultura familiar. Imagem: Thiago Henrique

 

Parte da população da comunidade trabalha periodicamente fora do estado, a outra parte vende o pouco que na feira pública local. Imagem: Thiago Henrique
Parte da população da comunidade trabalha periodicamente fora do estado, a outra parte vende o pouco que na feira pública local. Imagem: Thiago Henrique
Outros, como Josefa trabalham limpando mato das fazendas do entorno pertencentes a oligarquia do município. Imagem: Thiago Henrique
Outros, como Josefa trabalham limpando mato das fazendas do entorno pertencentes a oligarquia do município. Imagem: Tiago Henrique

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Com o governo desmoronando já nos primeiros meses de mandato e a popularidade cada vez mais baixa, Michel Temer encontrou na bancada ruralista a estratégia perfeita para manter-se no poder. Foi graças aos votos da Frente Parlamentar da Agropecuária, por exemplo, que foi possível barrar as denúncias de corrupção passiva, levantadas contra o presidente na Câmara dos Deputados. Além de explicitar as barganhas feitas pelo Poder Executivo para ter o apoio do Poder Legislativo, o episódio evidenciou o poder político da bancada ruralista que, por sua vez, agarrou a oportunidade para fortalecer uma agenda gestada há anos. Mudanças legislativas levadas a frente via canetadas presidenciais, medidas provisórias favoráveis aos seus interesses e até um decreto que renegocia dívidas de multas ambientais, demostram como a abertura para o setor –que sempre existiu, diga-se de passagem–, no governo Temer se transformou gradualmente na ideologia dominante.

A reunião extraordinária da Associação dos Quilombolas e Descendentes do Sítio Mundo Novo, foi convocada após a notícia veiculada pela BBC Brasil sobre a suspensão das demarcações até que se conclua julgamento de uma ação sobre a legalidade do processo de demarcação que está tramitando no Supremo Tribunal Federal (STF).

Segundo a BBC, um ofício foi enviado pela Casa Civil da Presidência ao Ministério público Federal informando que a interrupção do processo teria sido decidida durante uma reunião entre diferentes agências do governo, justamente em setembro de 2016.

Assinado pelos assessores Alexandre Freire e Erick Bill Vidigal, o órgão diz que a legalidade da demarcação de áreas quilombolas foi posta em dúvida pela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.239, levada ao STF em 2004 pelo PFL, atual DEM. Ela questiona a validade do decreto presidencial 4.887, assinado em 2003 pelo então presidente Lula, que definiu os ritos e critérios para a demarcação de terras quilombolas.

Nela, entre outros pontos, o DEM diz que a demarcação dessas áreas não deveria ter sido regulamentada por um decreto presidencial, e sim pelo Congresso, e também questiona a possibilidade de que as comunidades quilombolas se autoidentifiquem.

O julgamento começou em 2012 e está empatado em um a um. O relator do caso, ministro Cesar Peluzo (que deixou o STF naquele mesmo ano), concordou com o pedido do DEM e votou pela inconstitucionalidade do decreto.

Já a ministra Rosa Weber avaliou que o decreto é legal. O julgamento foi paralisado em 2015, quando o ministro Dias Toffoli pediu vista do processo para estudá-lo melhor.

Após ter sido suspenso por três vezes em 2017, o julgamento tem data prevista para o próximo dia 8 de fevereiro.

Os desfechos possíveis para essa história ainda são nebulosos nos dois sentidos: Se o STF decidir pela constitucionalidade do decreto, as regras não mudam e tudo continuará como está. O que não necessariamente é uma boa notícia. O Incra trabalha com sucessivos cortes no orçamento que, em sete anos, apresentou uma queda de 94%. Ano passado o órgão dispôs de apenas 4 milhões para titulações de árias quilombolas (em 2010 eram 64 milhões). Este foi o menor orçamento desde 2003. Dados obtidos pela Comissão Pró-Índio junto ao Incra indicam que, ano passado, 9 das 30 Superintendências Regionais do órgão tiveram verba inferior a R$ 10 mil para a regularização de terras quilombolas. Atualmente há 1536 comunidades que aguardam análise técnica, algumas desde 2007.

No caso contrário, julgar inconstitucional o decreto deixa o país sem uma norma específica para definir áreas quilombolas. Provavelmente o governo poderia concluir processos que não têm litígio, porém os demais teriam que ser analisados um a um. Apesar do direito às suas terras continuarem assegurados pela Constituição, isso colocaria em xeque a sustentação jurídica de terras já tituladas e inviabilizaria novas titulações, levando em consideração a força ruralista no Congresso que não está inclinada a aprovar qualquer lei que substitua o decreto presidencial.

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Tradição existente na comunidade desde os tempos do quilombo é a roda de Samba de Coco. Imagem: Thiago Henrique
Tradição existente na comunidade desde os tempos do quilombo é a roda de Samba de Coco. Imagem: Thiago Henrique
O costume se originou das reuniões familiares que eram realizadas para construção das casas de taipa. A pisada do samba servia de ferramenta para assentar o barro do chão das casas. Imagem: Thiago Henrique
O costume se originou das reuniões familiares que eram realizadas para construção das casas de taipa. A pisada do samba servia de ferramenta para assentar o barro do chão das casas. Imagem: Tiago Henrique

Um dos pontos que mais chamam a atenção na ADI 3239 é o que questiona a autoidentificação, um dos princípios para se iniciar o processo de titulação quilombola. O DEM e a bancada ruralista afirmam que o decreto abre margens para fraudes e deve ser derrubado. Para eles, o processo deve ser avaliado com base em documentos históricos.

O que fica evidente nesse processo são as divergências quanto a interpretação do conceito de quilombo. No passado, o termo era associado no Brasil a grupos de escravos fugidos e seus descendentes. A Constituição de 1988 tratou do tema ao determinar que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos”.

Em sua petição ao STF, o DEM diz que a Carta exige a comprovação “da remanescência –e não da descendência– das comunidades dos quilombos para que fossem emitidos os títulos”. Ou seja, o partido diz que as comunidades devem provar que são oriundas de grupos de escravos fugidos.

Já a Associação Brasileira de Antropologia (Aba) divulgou em 1994 um documento defendendo que a expressão remanescente de quilombo não se referia apenas a grupos “constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados”, mas também a comunidades “que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar”.

Segundo essa interpretação, hoje predominante entre os quilombolas brasileiros, o termo quilombo se aplica aos contextos de várias comunidades negras de diferentes partes do país.

Para a família de Josefa, por exemplo, seria difícil provar com documentos a remanescência:  “Meu pai e meu avô nunca deixaram rastros, tinham medo. Nós mesmos, desde pequenos fomos criados pra ter medo de gente branca. Meu pai foi ter um documento de identidade no fim da vida”.

Quanto as terras, a situação é ainda mais complicada, dona Zilda, irmã mais velha de Josefa, conta que muitas terras foram invadidas por fazendeiros com escrituras falsas: “A gente ainda fica sabendo de coisas desse tipo por aqui. Botam gado na nossa terra e logo depois vem a cerca. As terras aqui, muitas não tem registro e na época de pai, os negros trocavam a terra por comida.”

As narrativas dos familiares de Josefa confirmam que haviam “caboclos e outros negros fugidos” morando nas “locas de pedra” quando seus antepassados ali chegaram. O local expandiu-se com a formação de famílias que resistiam ao regime de escravidão e tinham procedências de diversas fazendas produtoras de açúcar, fumo, gado e leite.

Josefa me conta que foi seu avô, Antônio Martiniano Bezerra, escravizado que, após se empreender em fuga, chegou ao município de Buíque onde constituiu família e passou a morar. Antônio Martiniano casou-se com Cândida Maria da Conceição e tiveram 12 filhos. O único retrato de Antônio, um 3 por 4, é guardado numa caixa de fósforos que é carregada por ela quando vai para o trabalho na roça. Foi feito já no fim de sua vida, na década de 50, quando possuía mais de 100 anos de idade. “Tenho certeza que ele me protege e olha por nós. Sabe o que estamos passando e vais nos ajudar lá com os ministros” –diz.

Retrato de Antônio Martiniano, um dos fundadores do quilombo do sítio Mundo Novo. Imagem: Thiago Henrique
Retrato de Antônio Martiniano, um dos fundadores do quilombo do sítio Mundo Novo. Imagem: Thiago Henrique
A Família de dona Josefa observa o quilombo do alto da serra. Imagem: Thiago Henrique
A Família de dona Josefa observa o quilombo do alto da serra. Imagem: Tiago Henrique

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